segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O Louco e a Doutora

A vida te leva pra muitos lugares, doutora. Te traz sensações e sentimentos muito estranhos e diversos. Como agora, por exemplo, a vida te trouxe até esse hospital psiquiátrico, te trouxe até minha cela, e te apresentou a mim, doutora. Isso foi há 6 anos atrás. Todos as noites, durante esses 6 anos, você visitou minha cela pra saber se eu não ia me matar de madrugada e eu nunca falei. Alias, desde que eu estou aqui eu nunca abri minha boca pra falar com ninguém, mas agora você ta me ouvindo falar, doutora. E pela sua cor deve estar bem espantada.
Mas como eu estava dizendo, a vida faz isso com você, mas ela também pode te ignorar. Assim como me ignora e ignora você também, doutora. Você trabalha aqui por que não tem mais ninguém lá fora pra você. E eu vim me “hospedar” aqui, porque não quero ninguém lá de fora. Sabe, doutora, eu consigo ver a alma das pessoas, eu vejo a minha, vejo a sua e vejo a de todos que estão lá fora, eu escuto o que eles trazem bem no fundo da mente. E vai por mim, não é toda essa bondade que eles trazem por fora. É cruel, doutora, muito cruel. Suas verdadeiras vontades, seus verdadeiros prazeres aprisionados, tudo é muito cruel. O que me deixou louco, não foi ver dentro da minha alma, foi ver dentro da alma dos outros. Tem a garota que adoraria furar os olhos das pessoas no ônibus, tem a menininha perturbada que adoraria esfaquear o gato, tem o cara que sentiria prazer em torturar os outros e por aí vai, doutora. Eu já estou aqui há tanto tempo, que ninguém mais sabe como eu cheguei aqui, todos os funcionários que trabalhavam aqui quando eu cheguei já foram trocados. Faz tanto tempo, que nem eu mesmo lembro como cheguei aqui, não lembro nem do meu nascimento, mas eu sei que faz tempo. Não sei muito bem porque eu, nem como, nem de onde veio isso, mas eu estou vivo a muito mais tempo do que você imagina, doutora. Eu envelheço muito devagar, eu vi a segunda guerra mundial, vi a primeira, vi quando apareceram com a eletricidade, vi quando todos resolveram se lançar ao mar pela primeira vez, vi quando Roma ainda estava no auge do império e ve ela arder em chamas, na época de Roma eu ainda era um garoto. Quanto mais o tempo passa, mais devagar eu envelheço e não sei até onde isso vai chegar.
Acho que já chega de falar né, doutora. Pois bem, meça meu pulso, olhe nos meu olhos com sua lanterninha, cheque minha garganta como você sempre fez nos últimos 6 anos. A última vez que falei com alguém antes de hoje, já deve fazer uns 20 e tantos anos, ou mais...depois de viver tanto, eu já não consigo mais entender como o tempo passa. Bom, isso era tudo que eu tinha pra falar e não perca seu tempo esperando me ouvir falar de novo com você.

Heitor Godau – 13/11/2007

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