terça-feira, 10 de março de 2009

Conto 14 - O Último Servo de Deus

Eu fui o último servo de Deus. Não por que eu não queria mais servi-lo, apenas por não existir mais um deus a ser servido. Eu devo ter sido o milhonésimo “e não sei mais quantosésimo” sérvo de Deus. Trabalho fácil, apenas ajudava, recebia ordens, mandava construir um templo aqui, um altar de sacrificios ali. Como eu disse, trabalho fácil! Tinha meu lugar reservado aos pés de Deus, sempre protegido. Quando eu ficasse velho teria lugar e comida e cederia meu posto a outro mais jovem. Quando eu moresse Ele asseguraria minha paz eterna e todos os outros beneficios dados a quem trabalha para a God S/A. O que ninguém esperava, muito menos eu (afinal, com um trabalho fácil desses na mão, eu fazia de tudo para garantir a segurança do patrão) que até mesmo Deus era mortal, isso nos foi provado da forma mais incontestável. Ele tinha uma voz poderosa, mãos grandes e pés firmes, musculos capazes de sustentar o universo nos ombros (junto com todos nossos problemas e angustias), tinha olhos decididos e cabelos e baraba brancos. Só depois que ele morreu que eu parei pra pensar porque ele teria cabelos e baraba brancos. Afinal, se fosse só pra dar impressão de que ele era velho não precisava de tudo isso, a gente ja estava acostumado a pensar nele como um cara beeem velho, mesmo se ele tivesse cabelos e barba pretos. Acho que ele não tinha a aparência que tinha porque era Deus. Acho que ele tinha a aparência que tinha pra ser Deus. A única coisa que ele poderia ser com aquele jeitão era Deus.
Ainda tenho em minha memória como aconteceu, apesar de já terem se passados décadas...eu acho. É díficil dizer, depois que Ele morreu o tempo se tornou, por falta de expressão melhor, “atemporal”, e o espaço agora é mórfico e irregular. Mas eu estava contando de como aconteceu, apesar do suspense que estou fazendo não foi nada muito dramático (apenas dramático o suficiente para a morte de Deus). Adentrei em seus aposentos para levar alguns papeis que Ele tinha que assinar falando sobre uma nova lua no sistema de Antares e um novo começo de vida num planeta a alguns milhares de anos-luz daqui. Quando entrei levando os papeis o vi debruçado na escrivaninha, achei que tivesse adormecido, tinha acontecido algumas vezes nos últimos anos, mais vezes do que quando comecei o trabalho. Peguei uma manta para cobri-lo, não que Ele precisasse se aquecer (pensando agora, ele deveria precisar, uma vez sendo mortal Ele devia sentir friu também, enfim), coloquei por cima dele e notei que estava parado demais, quando Deus dormia de vez em quando ele roncava ou se mexia bastante. Dessa vez ele estava parado, com a cabeça debruçada na escrivaninha e o rosto manchado de tinta de caneta, os olhos abertos, mas muito calmos. A pele bem branca, o cabelo e a barba desarrumados e embaraçados, a boca fechada como se guardasse seu último segredo só pra si, não podendo revela-lo nem mesmo na hora de sua morte. Assim que vi seu rosto entendi o que não se passava mais pelo seu corpo, mas não fiquei triste, nem feliz, nem angustiado, nem preocupado. Era como se eu tivesse descoberto que um copo quebrou enquanto eu não olhava, fiquei apenas curioso pra saber como poderia ter acontecido e como se deu esse fato tão estranho. Por final das cotas, aqui estou, desempregado, esperando algum novo cara singular assumir a função de Deus (não tenho nem idéia se isso vai acontecer de verdade) e relatando como foi meu último dia de trabalho como o último servo de um deus morto!

Heitor Godau – 02/03/2009

Um comentário:

Mariana F. Bordin disse...

Vi que você está precisando de trabalho... e que sua função é a de servo de Deus. Por favor, encaminhe-me um Currículum Vitae caso se interessar!